7 de junho de 2008

SEGREDO MÉDICO E VIH/SIDA Perspectiva Ético-Jurídica

Acta Méd Port 2004; 17: 451-464

SEGREDO MÉDICO E VIH/SIDA
Perspectiva Ético-Jurídica

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MARIA DO CÉU RUEFF*
Universidade Lusíada. Lisboa. Centre of Medical Law and Ethics. King’s College London
* A Convite da AMP



R E S U M O


O objecto deste artigo é o fogo cruzado dos crimes, respectivamente, de violação de segredo profissional e de transmissão de doença contagiosa, por omissão, no quadro legal português, em caso de VIH/Sida. O conflito de interesses e de deveres daí resultante,para o médico, e a dificuldade em o solucionar.
O médico deve falar ou manter-se em silêncio quando o doente com VIH/Sida não quer dizer a verdade ao parceiro sexual, existindo risco de transmissão de doença contagiosa? O ponto de vista dos direitos humanos. A posição da Organização Mundial de Saúde e da União Europeia na luta contra a discriminação dos doentes portadores de VIH/ Sida. As disposições da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) relativas ao direito à privacidade e à não discriminação, também em função da doença. Possibilidade de confronto destas posições com as posições defendidas em:
a) Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, de 23 de Outubro de 2000, requerido pela Ordem dos Médicos;
b) Doutrina portuguesa;
c) Lei Penal e Processual Penal portuguesa.
d) Casos de jurisprudência dos Tribunais superiores do Reino Unido.
A ética da responsabilidade, o entrecruzar dos tradicionais princípios da Medicina,
Bioética e Direito, bem como o reforço da deontologia médica e a criação de uma
efectiva deontologia do doente como possíveis caminhos a trilhar no sentido de
respostas para os problemas.

Palavras-Chave: Segredo Médico,VIH/Sida,Direitos Humanos,Ética,Bioética,Medicina e Direito.



Do ponto de vista superior da peste, toda a gente,
desde o director ao último dos detidos, estava condenada,
e, talvez, pela primeira vez, reinava na
prisão uma justiça absoluta

Albert Camus, A Peste, pgs 187 e 188


Até onde deve ir o segredo médico? Era esta a pergunta feita pelo jornal Público, de 4 de Outubro de 2000, sobre um caso concreto que levou a Ordem dos Médicos (OM) a questionar-se acerca do sigilo médico e a ouvir outras pessoas e entidades sobre o seguinte problema: que deve fazer um médico perante um seropositivo que se recusa a informar a parceira da sua situação e se propõe manter com ela todo o tipo de relações, sem protecção?
O jornal Diário de Notícias (DN) do mesmo dia polemizava a questão como Segredo Profissional e esclarecia, no título da notícia, que a Ordem quer sigilo puro e duro, enquanto o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) defende solução de excepção para casos concretos, que ponham em perigo a vida de terceiros. O parecer requisitado pelo Presidente do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos ao CNECV, sobre a apreciação ética da situação concreta da vida de um doente seropositivo, assistido num Centro de Atendimento a Toxicodependentes, que não informa a sua mulher dessa seropositividade, apesar de ter sido instado a tal e que mantém com ela relações sexuais sem protecção, foi redigido em 23 de Outubro de 2000. Aí se opinava que a médica assistente se encontrava perante um conflito de deveres - o da defesa da privacidade do doente, através do sigilo médico e o da protecção da saúde e vida da mulher do paciente e eventuais filhos do casal. Teciam-se, de seguida, vários considerandos que fundamentam, por assim dizer, o parecer, pelo que importa referencia-los.
Entendia-se que o sigilo médico é um importantíssimo direito do doente e uma obrigação deontológica e ética do médico, mas que uma comunicação directa e confidencial a alguém para acautelar a sua vida não podia ser considerada acto de publicitar um facto, nem as acções para salvaguarda da vida se podiam ter como violadoras de qualquer obrigação menor, pelo que se julgava não haver, neste caso, ofensa ética, ou sequer, de uma perspectiva ética, violação de um dever de sigilo. Afirmava-se, depois, a prioridade da vida como valor e que a sua salvaguarda constituía um dever ético primordial, a que todos os outros deviam subordinar-se. Esclarecia-se, finalmente, que o CNECV deixava para as entidades competentes os problemas deontológicos, pronunciando-se apenas acerca das questões éticas. E o parecer, em jeito de conclusões, era claro ao afirmar que a médica assistente:
— devia envidar todos os esforços para celeremente persuadir o doente da obrigação que sobre ele impende de comunicação à esposa da sua seropositividade e, bem assim, dos riscos da sua transmissão;
— se necessário, devia mesmo esclarecer que, dada a situação específica de perigo para a saúde e vida de terceiros, as normas éticas de respeito pela legitimidade e pela vida desses terceiros justificavam tal comunicação;
— não conseguindo, deste modo, convencer o doente, devia informá-lo de que cumpriria a sua obrigação de comunicar à mulher a seropositividade daquele e os respectivos riscos de transmissão, o que não pressuporia, no caso, quebra de segredo médico.
O parecer dizia, por último, que esta comunicação era indispensável para que a mulher do doente pudesse fazer os testes de diagnóstico e iniciar tratamento, caso tivesse sido já infectada.
Pergunto:
Há um direito à verdade quando do seu exercício dependa a vida, a integridade, a segurança, a conservação da espécie? Esse direito à verdade é um direito (difuso) da comunidade ou deve ser encabeçado casuisticamente pelo terceiro que possa estar em perigo na situação concreta? As pessoas, como o cônjuge ou os parceiros sexuais, em relação de proximidade e em perigo de contaminação têm, por esse facto, direito à verdade do doente? A revelação da verdade quando dela depende a vida não implica a quebra de sigilo? Ou só não implica a quebra de sigilo se se tratar de revelação de factos ao cônjuge e filhos? E se em vez de cônjuge estiver em causa o(a) parceiro(a) de uma união de facto ou de relação afectiva que não revista sequer esses contornos?
Os filhos que não vivam com o doente têm ainda direito à verdade? No caso de doente que mantenha, concomitantemente, relações sexuais conjugais e extra conjugais, respectivamente, com duas pessoas, ambas têm direito à verdade ou só uma delas e qual?
É difícil adivinhar o leque de pessoas que teria, em tese geral, legitimidade para saber a verdade. Como é difícil saber, se, comunicando a seropositividade ao cônjuge ou parceiro(a) sexual que acompanha o(a) seropositivo(a), caso este o não queira fazer, se acautelam os riscos de transmissão a outras pessoas, mas sendo sempre certo que, então, aquele fica na posse duma verdade cuja revelação não é consentida.
Esta problemática pode porém assumir outros contornos se e quando há intuito claro de transmissão de doença contagiosa. É o caso referido na Revista Visão (2 a 8 de Novembro 2000) de Maria e Manuel, nomes fictícios, que levou, na situação concreta, o arguido a ser condenado, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Portimão1, em pena de prisão2, de acordo com o art. 283º, nº 1, alínea a) do Código Penal, relativo ao crime de propagação de doença contagiosa. É impressionante a descrição dos factos feita pela jornalista:

Não era verdade, descobriu Maria (nome fictício) ao fim de uns meses, no calor de uma noite de gritaria e agressões físicas. Ele com uma faca de cozinha na mão, ela a morder-lhe o lábio, ele a sangrar e espalhando-lhe, com uma mão, o sangue pelo corpo. Ele a confessar-se finalmente. Afinal, há dois anos que Manuel (nome fictício) sabia ser portador do VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana). Pior: estava com sida, ou seja, infectado e com sintomas da doença.

Mas é também impressionante e esclarecedor o que levou o protagonista a não falar:

De início, ele decidira ocultar a doença por recear que Maria pusesse a correr a notícia, e por ter pensado apenas dar umas voltas, deixando-a, de seguida. A certa altura, pensou:bom seria que Maria já tivesse sido contaminada; assim, estariam iguais e ficariam juntos para sempre. É que começara a gostar dela, tanto que sentia-se inseguro ante a possibilidade de ser abandonado quando a namorada descobrisse a mentira. A solução, decidiu, passava por continuar a manter relações sexuais não protegidas, para que Maria contraísse a doença e não o largasse nunca.

A decisão da 1ª Instância, relativa ao crime de propagação de doença contagiosa nesta situação, veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora3, tendo ocorrido apenas uma alteração no tocante à dosimetria da pena4. A propagação de doença contagiosa, por acção, na forma dolosa, tem o sabor e, - espera-se - , por certo a periodicidade das situações-limite.
Problemática é ainda, a questão do crime de propagação de doença contagiosa, por omissão, do médico, nos termos da conjugação dos arts 283º e 10º do C. Penal, e o entrecruzar da sua problemática com a possibilidade de violação de segredo profissional e perpetração do respectivo
crime, previsto no art.195º daquele diploma, por parte de tal médico. É matéria que será analisada mais à frente.
Aqui não posso deixar de referir, por outro lado, o papel que a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem desempenhado na luta contra a discriminação dos portadores do HIV, pelo menos desde a Cimeira Mundial de ministros da Saúde, por si promovida, bem como pelo Governo Britânico e realizada em Londres em 1988. Aí se sublinhou a necessidade de protecção dos direitos humanos e da não discriminação destes doentes5, o que determinou que o Conselho das Comunidades Europeias e os Representantes dos Governos dos Estados-Membros, reunidos em 31 de Maio de 1988 e aderindo aos princípios da OMS, chegassem às seguintes conclusões6:
– sendo a Sida um problema de saúde pública, a luta contra a doença deve basear-se em considerações dessa natureza;
– na luta contra a Sida é atribuída prioridade absoluta à prevenção pela informação e educação para a saúde;
– é ineficaz do ponto de vista da prevenção, o recurso a qualquer política de rastreio sistemático e obrigatório;
– qualquer discriminação e estigmatização das pessoas afectadas pela Sida devem ser evitadas.
Em Maio de 2000, a OMS, em conjunção com outras instituições, como a Unesco e a Unicef, publicou um protocolo para identificação da discriminação contra os portadores do HIV, considerando que a identificação e a eli454 minação das discriminações arbitrárias é um imperativo no controlo desta epidemia7.
Posteriormente, a Decisão nº 647/96/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Março de 1996, estabeleceu um programa de acção comunitária relativo à prevenção da sida e de outras doenças transmissíveis no âmbito da saúde pública (1996 - 2000). Volta-se a dar ênfase à informação, educação e formação, apoio às pessoas contaminadas pelo VIH/SIDA e combate à discriminação.
Estas têm sido as políticas ditadas pela OMS e pela União Europeia, mas há também que as enquadrar nos instrumentos nacionais, maxime nos preceitos constitucionais dos Estados-Membros. É o que veremos já de seguida.
A Constituição portuguesa não refere o segredo médico8. No Título II da Parte I, relativo aos Direitos, Liberdades e Garantias, a Constituição começa por consagrar, no art. 24º, o direito à vida, seguindo-se, no art. 25º, o direito à integridade pessoal, que abrange (nº 1) a integridade moral e física das pessoas. A enunciação destes direitos9 e a ordem por que vêm expostos é suficiente ao legislador e ao intérprete para concluir que o direito à vida constitui um prius relativamente aos direitos pessoais seguintes. Mas a vida é também garantida enquanto integridade moral e física das pessoas e a sua violação pode levar, em certas situações, à falta de condições de vivência humana ou sobrevivência, as quais se encontram, deste modo, igualmente acauteladas. A protecção do segredo e, em particular, do segredo médico, pode ancorar-se aqui, entendendo-se, como entendemos, que é indispensável à vivência humana a reserva da verdade de cada um ou o reduto material e espiritual da pessoa humana. No entanto, a Constituição da República Portuguesa (CRP) elenca outros direitos pessoais no art. 26º, entre os quais se conta (nº 1) com o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, devendo fundar-se também aqui a protecção do segredo médico. Evidentemente que a vida privada e familiar não abarca tudo o que consideramos poder fazer parte da verdade total ou reduto absoluto da pessoa, a merecer resguardo através do sigilo10, pelo que a previsão normativa do artigo 25º não é minimamente esvaziada pela do artigo 26º11, que se destina precisamente a estender a tutela jurídico-constitucional à reserva da intimidade da vida privada e familiar da pessoa12.
No nº 2 do art. 26º, a Constituição remete para a lei o estabelecimento de garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. À cabeça de tais garantias pode dizer-se que está a protecção penal do segredo profissional, através da previsão dos crimes de violação de segredo e de violação de segredo porfuncionário público, respectivamente, nos arts. 195º e 383º do Código Penal (C. Penal). Por outro lado, a dignidade da pessoa humana constitui, na economia do nº 2 do art. 26º, o valor de referência constitucional em sede de informações relativas às pessoas e famílias, ligando-se indubitavelmente a tudo o que possa integrar a esfera íntima da pessoa e colocando-se afinal bem próxima — e não equidistante — dos valores vida, integridade pessoal e reserva da intimidade da vida privada e familiar. A dignidade da pessoa humana é, pois, algo que assiste ao ser humano pelo simples facto de o ser e que independe de qualquer situação ou condição humana. Nasce-se, vive-se e morre-se com dignidade e nem a declaração de estado de sítio ou de emergência pode afectar os direitos à vida e à integridade pessoal, como refere o nº 6 do art. 19º da CRP13. Mas à pergunta como se mantém a dignidade no sofrimento e na doença, em momentos terminais e na morte já é mais difícil responder. Talvez o segredo médico tenha aí um papel a desempenhar14, e um papel seguro na chamada medicina paliativa, ou, como lhe chama João Lobo Antunes (2000, p. 3), ... a medicina do crepúsculo, ou seja, a que cuida daqueles em quem a luz da vida, a pouco e pouco, se vai apagando., e que esclarece ademais:

É que, esta medicina é responsável pela vigilância da imagem de quem morre; é, por isso, guardiã das memórias, aprendi eu quando ainda não pensava ser médico.(2000, pp. 6 e 7)
.

A lepra, a peste, a síflis, a cólera, a raiva, a tuberculose, as doenças mentais, o cancro e, mais recentemente, a seropositividade são exemplos de doenças que levaram, ao longo dos séculos, a tratamentos discriminatórios e ao isolamento dos seres humanos. É como se a humanidade fugisse de certas doenças e de todos aqueles que são seus portadores. Mas as doenças existem, não cabendo à humanidade decidir quando se instalam, que doenças vão ser e quais os respectivos portadores; caber-lhe-á discriminar em função da doença?
O relato de Susan Sontag (1998), inspirado em tais doenças, é esclarecedor acerca da forma como a sociedade tem encarado a doença e a morte e de como se tem feito da doença uma metáfora. Expressivamente, diz:

Qualquer doença importante cujas causas sejam obscuras, e se mostre rebelde a qualquer tratamento, tende a tornar-se objecto de um significado que a envolve. A princípio os aspectos que inspiram maior terror (corrupção, podridão, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. A própria doença converte-se em metáfora. Depois, em nome da doença (ou seja, usando-a como metáfora) esse horror transmite-se a outras coisas. A doença passa a adjectivo. Passa a ser utilizada para designar o que é repugnante ou feio. Em francês, uma fachada degradada é ainda hoje qualificada de lépreuse. (...) Os sentimentos em relação ao mal projectam-se na doença. E a doença (enriquecida com tal significado) projecta-se no mundo. ( 1998, pp. 66 e 67).

Na linguagem cinematográfica é patente a discriminação feita a um doente seropositivo no filme
Philadelphia15, o qual intenta uma acção contra a sociedade de advogados que o despede, alegadamente, por diminuição das qualidades de trabalho, demonstrada em situação falsamente criada pela própria sociedade, mas a final, pela sua seropositividade, isto é, por ser portador de
uma doença. Curiosamente, o protagonista da história — Andrew Beckett — é uma pessoa homossexual e o seu advogado uma pessoa negra, vindo a discutir-se também em Tribunal a discriminação em função da opção sexual16.
Tanto Susan Sontag (1998, p.127) como a personagem principal do filme Philadelphia evidenciam o carácter estigmatizante da doença — no caso a sida — , e referem ambos que ela acarreta para muitas pessoas uma morte social que precede a morte física. Ora, é também sobre essa morte social que recaem as minhas preocupações17 e sobretudo sobre uma eventual responsabilidade da lei neste estado das coisas, como diz Teresa Pizarro Beleza (1997, p. 183) a propósito da desigualdade e diferença em relação às mulheres, que me interessa reflectir. E perceber até que ponto o segredo médico pode ajudar a reparar o dano que também se instala em cada um, quando acontece uma doença incurável e (ou) que comporta a repulsa, a aversão, a relutância, a fuga dos outros seres humanos. É justa a imposição de uma morte social antes da morte física?
Quando se discute o prolongamento artificial da vida e a criação da vida para se salvar da morte? A sociedade não deve, justamente, ajudar a viver e acarinhar aqueles para quem a esperança limitada de vida limita a própria vontade de viver? Dando a palavra ao médico e, por todos, a João Lobo Antunes (2000, p. 13):

O sentimento do fim anunciado inspira necessariamente uma reserva absoluta, silenciosamente partilhada por médico e doente. Martin du Gard observa que a inteligência humana é tão essencialmente alimentada do porvir, que quando qualquer possibilidade de futuro se esgota, quando cada impulso do espírito vem, obstinadamente, embater na morte, o pensamento não é mais possível.
O nº 1 do art. 26º da CRP elenca outros direitos pessoais, como o direito ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, à imagem e reconhece protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. A concretização deste enunciado encontra-se seguramente no âmbito da tutela da personalidade, cara ao Direito Civil18, cabendo-nos, aqui, em todo o caso, sublinhar que a doença tem sido ao longo dos séculos factor claro de discriminação entre os seres humanos e que a seropositividade é hoje, porventura, um dos principais. Com a agravante de se lhe ter associado também o estigma dos chamados grupos de risco, considerados normalmente formados por toxicodependentes e homossexuais. Como referem Ian Kennedy e Andrew Grubb, pais, por assim dizer, do Direito Médico no Reino Unido, os homossexuais já não constituem per se um grupo de alto risco. A um nível mais elevado, é a conduta que cria riscos e não o facto de se ser membro de qualquer grupo particular. Eis a questão na perspectiva dos direitos humanos (Kennedy e Grubb, 1992: 13 e 14) 19.
Relativamente à questão do rastreio do HIV, pode fundamentar- se na parte final do nº 1 do art. 26º da CRP um direito ao anonimato de todos os que a ele se julguem dever submeter.
Convém recordar, a este respeito, que recolher sangue no âmbito de um exame médico para detectar HIV constitui ofensa à integridade física da pessoa em causa e se for efectuada por um médico sem o consentimento do paciente é facto que consubstancia o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punido no art 156º do C. Penal. Assim e tal como referiu o Procurador Geral Adjunto António Bernardo Colaço, em intervenção no ciclo de conferências organizado pela Comissão Nascional de Luta Contra a Sida em Janeiro de este ano (v. Revista do SMMP, 1º Trimestre, 2003, pp. 101 e seg) A licitude dos testes de despistagem só ocorre com o consentimento informado (informed consent) do candidato ao trabalho ou trabalhador, só assim havendo compatibilidade com o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Relacionado ainda com esta problemática está o Parecer nº 26/95, da Procuradoria Geral da República (in: DR nº 96, II Série, de 24 de Abril) que defende que a lei portuguesa actual não exclui a possibilidade de emissão relativamente a portadores de HIV do atestado de robustez física e de perfil psíquico, previsto na alínea f) do artigo 22º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro.


A Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra o direito ao respeito pela vida privada no seu artigo 8º, fundado-se também aí o direito ao silêncio no que toca ao estado de saúde de uma pessoa20.
A CRP assegura uma justiça distributiva alicerçada no princípio da igualdade, consagrado no art. 13º, pelo qual, nos termos do seu nº 1 Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei. No entanto, no nº 2 do referido preceito, enfatizam-se factores de discriminação entre as pessoas mas não se encontra, entre eles, o factor doença ou deficiência. Ora entendemos, como igualmente se defende no livro branco do deficiente (2002) que a doença e a deficiência deviam constar de tal elenco, apesar de ser pacífico na doutrina portuguesa que ele tem um carácter meramente exemplificativo ( por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira21 ). O mesmo acontece com o art. 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que não inclui a doença nem a deficiência entre os motivos de interdição de diferenciação entre as pessoas, apesar de a Recomendação nº 1116 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa se haver proposto, em 1989, acrescentar ao catálogo a palavra saúde, já então devido à necessidade de acautelar o anonimato dos seropositivos, o que, porém, nunca chegou a ser feito. Quando a doença pode levar, pela sua própria natureza, à desigualdade entre as pessoas e mesmo justificar um tratamento desigual entre elas. É esse precisamente o motivo que justifica o tratamento constitucional do internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado e a prorrogação sucessiva de medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade, em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, respectivamente, na alínea h) do nº 3 do art. 27º e nº 2 do art. 30º da CRP. A Constituição, de resto, não utilizou, nestes preceitos, a palavra doente, como escolheu as palavras Cidadãos portadores de deficiência para epigrafar a norma - que consubstancia o artigo 71º - onde se esclarece (no nº 1) que estes cidadãos (também) gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição. Esta redacção pode parecer pleonástica mas se conjugada com o nº 2 do preceito em pauta, em que o Estado se obriga, nomeadamente, à reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e ao apoio às suas famílias, bem como a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, pode considerar-se que o preceito mais não fez do que legitimar um tratamento de discriminação positiva relativamente a estes cidadãos, que também não são tratados
como doentes. O portador do vírus do HIV é uma pessoa portadora de deficiência irreversível no sistema de imunodeficiência humana a carecer de reabilitação e integração e de apoio à sua família. O Estado deve desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com tais cidadãos.
É pacífico tanto no Reino Unido como nos EUA a aplicação aos portadores de HIV/Sida do regime instituído, respectivamente, pelos Disability Discrimination Act (DDA) de 1995 (UK) e Americans with Disabilities Act (ADA) de 1990 (EUA)22. Há um célebre caso da Jurisprudência americana (caso Bragdon v. Abbott 1998) em que o Supremo Tribunal defendeu que a seropositividade constitui uma deficiência nos termos do ADA, porque limita de forma substancial uma actividade central da vida que é a reprodução (Araújo, 2001: 35) .
O legislador constitucional é sensível à questão da doença: estatui que todos têm direito à segurança social e institui um sistema de segurança social que protege os cidadãos na doença (nºs 1 e 3 do art. 63º); prevê, igualmente, que todos têm direito à protecção da saúde (nº 1 do art. 64º). Mas sublinha, ainda, que todos têm o dever de a defender e promover (nº 1 do art. 64º).
A realização do direito à protecção da saúde é feita, pelo Estado, através de um serviço nacional de saúde universal e geral tendencialmente gratuito (alínea a) do nº 2 do art. 64º), incumbindo-lhe, entre outras, a tarefa de fiscalizar e disciplinar as formas empresariais e privadas da medicina de molde a assegurar, nas instituições públicas e privadas, padrões de eficiência e qualidade (alínea d) do nº 3 do art. 64º.
Cabe aqui noticiar a existência de alguns diplomas ordinários com incidência sobre a questão do HIV/Sida. O Decreto-Lei nº 54/92, de 11 de Abril, que estabelece o regime das taxas moderadoras, isenta do seu pagamento os doentes com Sida e os seropositivos; O Decreto-Lei nº
216/98, de 16 de Julho, estabelece condições mais favoráveis de acesso a pensões por invalidez por parte de pessoas infectadas pelo HIV; o Despacho 280/96 da Ministra da Saúde, de 12 de Outubro de 1996 (in: DR nº 237, II Série) estabelece regras sobre os medicamentos anti-retrovíricos destinados ao tratamento da infecção pelo HIV, no que toca a respectiva prescrição, utilização e carácter gratuito.
A Constituição portuguesa consagra, por outro lado, uma deontologia da saúde (art 64º, nº 1), que vinculará todos os que se cruzem nela.
Walter Osswald, em escrito intitulado Direitos do doente (1996, pp. 93 a 98) analisa aspectos favoráveis e desfavoráveis a uma eventual codificação dos direitos do doente e debruça-se sobre alguns destes direitos e respectivos deveres. O seu testemunho torna clara a premência de uma deontologia do doente e a necessidade do reforço da deontologia médica. Do elenco tratado ressaltam o dever do doente de revelar toda a verdade a quem o interrogue, depositando confiança em quem prove merecê-la e fornecendo toda a informação relevante e o último e porventura mais importante direito do doente Morrer em paz e em dignidade. (...) Morrer assim é morrer a sua própria e insubstituível morte, última oportunidade para o exercício da sua liberdade. (1996, p. 97)23.
Perguntar-se-á, por certo, a propósito do HIV/Sida, acerca do carácter absoluto ou relativo do segredo, do rastreio voluntário ou obrigatório da doença e dir-se-á ainda que há doenças contagiosas e doenças que podem levar os seus portadores a terem comportamentos que coloquem em risco valores essenciais como a vida, a integridade, a liberdade, a segurança, a saúde das pessoas24. Confesso a minha perplexidade e inquietação constante perante tais questões que me levaram, de resto, a escolher o segredo médico como tema de doutoramento.
É justificado aqui, no entanto, que me refira a alguns casos em que o dever de segredo, que vincula o médico, concorre e conflitua com outros deveres que lhe são igualmente impostos. Com efeito, o médico encontra-se sujeito a segredo profissional e se o revelar pode ser punido no âmbito da moldura legal prevista no artigo 195º do C. Penal. Mas, o próprio exercício da profissão médica pode levar a situações de conflito de deveres. Suponhamos a seguinte situação: A e B, casados, doentes do mesmo médico, decidem, em consultas separadas, fazer análises para rastreio do HIV; obtidos os resultados, verifica-se que A é portadora do vírus e B não, factos comunicados separadamente a ambos. Após tentativa do médico no sentido de convencer A a transmitir os resultados ao cônjuge, esta declara que não só não o fará como continuará a ter relações sexuais desprotegidas com B, por receio de abandono devido a esse facto. Nesta situação, face a A, o médico encontra-se vinculado pelo dever de sigilo e caso o viole é susceptível de aplicação o artº 195º do C. Penal, relativo ao crime de violação de segredo25. Mas o médico encontra-se igualmente vinculado por relação contratual médica com B e entre o feixe de deveres que dela resulta está o de zelar pela saúde, integridade e vida deste. Ou seja, a partir da relação contratual estabelecida entre médico e doente e devido à assunção fáctica de uma posição de confiança criada entre os dois, o médico tem um dever de protecção de certos bens jurídicos tutelados (como a vida, a integridade) e é garante da não produção de certos resultados. Assim, face a B, pode dizer-se que o médico tem o dever de comunicar a seropositividade de A, na medida em que tal comunicação obsta à propagação de uma doença, que cria perigo para a vida ou perigo grave para a integridade fisíca de B. Com efeito, se o não fizer, é defensável a perpetação, pelo médico, do crime de propagação de doença contagiosa, por omissão, nos termos do art. 283º, nº 1, alínea a), conjugado com o nº 2 do artº 10º, todos do C. Penal. Convém sublinhar que só é configurável a punição por omissão , neste caso, porque o médico tem uma relação médica com B, isto é, porque, e ao pé da letra do artº 10º, nº 2 do C. Penal, sobre ele recai um dever jurídico que pessoalmente o obriga a evitar esse resultado26.
Desta situação decorre que o médico tem, face a A, o dever de omitir e, face a B, o dever de agir, o que equivale a dizer que, omitindo ou agindo, se encontra face a duas molduras penais abstractamente aplicáveis. O médico encontra-se, assim, perante um conflito de deveres e a lei penal prevê, então, a exclusão da ilicitude do facto que for efectuado no cumprimento do dever de valor igual ou superior ao do dever que sacrificar, como dispõe o artº 36º do C. Penal, relativo ao conflito de deveres. Não é claro se este preceito se aplica só à colisão de deveres de actuar ou se também à colisão entre um dever de actuar e um dever de omitir. Alguma doutrina27 tem entendido que nesta última situação - dever de actuar v. dever de omitir - se deve sediar a problemática no âmbito do Direito de necessidade, previsto no artigo 34º do C. Penal. Neste caso,
haveria que averiguar se o interesse a salvaguardar era sensivelmente superior ao interesse sacrificado (al. b)), de tal modo que fosse razoável impor a um dos doentes o sacrifício do seu interesse - reserva da integridade e intimidade - em atenção ao valor do interesse ameaçado - a vida e a integridade física (al. c)). Ou seja, exige-se a ponderação dos interesses concretos em presença, de modo a considerar casuisticamente a superioridade do interesse a
salvaguardar.
Não é difícil encontrar no Direito e na pauta valorativa constitucional a relação de valores subjacente aos interesses em presença neste caso, nem difícil concluir que se privilegia a vida - art. 24º da Constituição - , pois que, sem ela, não haverá sequer o titular físico e espiritual, ou a pessoa, em quem se cumprem a dignidade, integridade, intimidade. Não obstante ficarem, para uma das partes, postergados a integridade moral, reserva da intimidade e o valor tempo de vida, que julgo dever ser autonomizado, porque relevantíssimo em portadores de doença incurável, irreversível e célere até ao termo final.
Se o médico comunicar a seropositividade de A a B considerar-se-á justificado esse comportamento e excluída a ilicitude da violação de segredo médico, neste caso. Situação semelhante à que acabámos de tratar é a que pode envolver duas pessoas que tenham com o mesmo médico diferentes relações, isto é, uma delas, uma relação familiar, outra, uma relação médico e doente. Admita-se a hipótese de o médico ser pai de uma filha menor e médico do namorado desta, fazerem ambos testes para rastreio do HIV, resultando o teste do namorado positivo e o da filha do médico negativo. Face àquele, o médico tem o dever de segredo, projectado num contrato e alicerçado numa relação de confiança facticamente assumida. Face à filha, tem o dever de protecção alicerçado numa vinculção biológica, natural e estreita que o torna garante da não lesão de certos bens, como a vida e integridade, igualmente com projecção jurídica (v. artºs 1885º, 1887º, 1901º do C. Civil e 138º do C. Penal). Aplicar-se-iam os raciocínios feitos a propósito da situação anterior e teríamos mais um caso de exclusão da ilicitude, caso o médico quebrasse o sigilo. A diferença residiria na circunstância de não estarmos perante duas relações médico e doente, tituladas pelo mesmo médico, mas perante duas relações diferentes, uma médico e doente e outra pai e filha, encabeçadas pelo mesmo médico.
Dissemelhantes destes casos são aqueles em que se encontram os médicos quando conhecem a seropositividade dos doentes e não mantêm com as pessoas próximas destes que são susceptíveis de contágio qualquer relação médica ou estreita de outro teor que permita justificar uma eventual quebra de sigilo. Aqui o médico encontra-se apenas vinculado pelo dever de segredo, não contando, face ao ordenamento jurídico, com um dever pessoal de actuar que permita tornar lícita a quebra da jura do silêncio. Há quem entenda, no entanto - é o caso de Manuel da Costa Andrade - , que se deve aplicar ainda aí o artº 34º do C. Penal, relativo ao Direito de necessidade(1999,Tomo I, pp. 797 e 798). Sempre haverá que aduzir, não obstante, os
argumentos avançados por Teresa Pizarro Beleza, em Janeiro de 1988, em intervenção efectuada em Coimbra, a convite precisamente da Fundação Portuguesa A Comunidade contra a Sida(1988, p. 3). Cito:

Há certamente um conflito de difícil resolução entre o dever de segredo e o dever de salvar a vida, do ponto de vista médico. Mas nem um nem outro são ilimitados: haverá que tentar uma concordância prática entre deveres inevitavelmente conflituantes, recorrendo, em última análise, à Constituição da República e, obviamente, à consciência ética e profissional do médico. Não estará só em causa, em todo o caso, apenas o dever de segredo. Também o risco de efeitos perversos de uma tomada de posição com intuitos preventivos tem de ser ponderado. Se os doentes receiam a sua identificação pública ou ainda que restrita por parte dos médicos, a probabilidade é que evitem os contactos formais com o sistema de saúde - com as consequências trágicas que daí certamente advirão, não só para eles próprios, mas também para qualquer política oficial de (tentativa de) controlo da sida.

De resto, a violação sistemática do dever de sigilo acarreta o risco de discriminação, pode determinar o abandono do sistema de saúde, sacrifica o interesse geral no sistema médico, inexistente sem o princípio da confiança e do segredo, o que leva a ter de tomar em consideração, na ponderação de interesses, as razões de saúde pública que originaram as medidas tomadas pela OMS nesta matéria e referidas atrás.
Concordo inteiramente com a posição também defendida por Sara Spencer (1990), quando sublinha que proteger os direitos humanos e a dignidade dos afectados com o vírus de HIV/SIDA é essencial, não só para garantir qualidade de vida a pessoas que já têm de suportar um tão grande fardo, mas também para assegurar efectividade aos próprios programas de saúde destinados a limitar o número dos afectados. Com efeito, nas suas palavras:

The effectiveness of those education programmes are, in turn, essential, if we are to avoid a parallel epidemic of prejudice and fear, rooted in ignorance.The preventive programmes will only be effective if individuals are convinced that a positive HIV test will not lead to breach in confidentiality or discrimination (Sarah Spencer, 1990: 115).

A questão é de alguma delicadeza. A situação ideal será sempre a de colocar nas mãos do detentor da realidade e da verdade a faculdade de a dizer, ou seja, de criar todas as condições ao doente para que este se sinta apoiado, informado e livre o suficiente para dizer a verdade. Sabendo-se, como se sabe, que, as mais das vezes, a verdadeira cadeia é constituída pelo estigma, possibilidade de abandono, medo do isolamento, vergonha, incompreensão. Aí o sistema médico pode e deve desempenhar um importante papel pedagógico, a humanização
da relação médico-doente pode constituir um suporte afectivo precioso para o melhoramento das condições de revelação da verdade e o dever de segredo ser uma garantia de melhor integração na doença, na diferença, na luta pela vida, tanto no hospital como na sociedade. No Reino Unido tem havido um longo debate sobre esta questão e há várias decisões de Tribunais superiores que permitem ter por construída já uma certa corrente de opinião. No caso A-G v. Guardian Newspapers (1988)28. Lord Goff estabeleceu muito claramente o seguinte: embora na base da lei da protecção da confiança esteja o interesse público de que a confiança deve ser preservada e protegida pelo ordenamento, no entanto, este interesse público pode ter mais valor em outro compensador interesse público que favoreça a revelação. É este princípio limite que pode requerer ao Tribunal que leve a cabo uma operação de balanço, pesando o interesse público na manutenção da confiança contra o compensador interesse público em favor da revelação29.
Ou seja, o Tribunal reconheceu que a obrigação de confidencialidade dos médicos é justificada por um interesse público e que o dever dos médicos de preservar a confiança dos doentes reflecte uma questão pública de saúde e não uma questão individual de privacidade. Foi assim que no famoso caso X v. Y (1988)30 em que se pretendia revelar num Jornal nacional o nome de dois médicos de um hospital, portadores de HIV, que aí continuavam a trabalhar, o interesse público na confidencialidade como meio de preservar a saúde pública prevaleceu sobre o interesse igualmente público da liberdade de imprensa em revelar toda a verdade à população31. Foi ainda sublinhado que, de outro modo, os médicos ficariam desacreditados e de futuro os doentes não os procurariam caso eles revelassem a verdade.
Rolf Winau (1997:23) propõe uma ética da responsabilidade na medicina e entende como prioritária a formação da boa consciência, para a decisão numa situação concreta. Na sua óptica, as normas e as leis servirão como quadros de orientação mas, tal como a ética casuística, não bastarão em certas situações-limite em que há essencialmente que avaliar os bens em concorrência, no sentido da boa consciência.
O filósofo Fernando Gil, em texto inédito intitulado Mors certa, hora incerta, reflecte sobre ética da liberdade, orientada para a valorização do possível, ética da obediência, orientada para a fraqueza e para a morte - às quais nos é sobretudo lícito submeter - e ética da responsabilidade,
mais vocacionada para a co-implicação e acção, a qual tem em conta a relação com o outro e a relação com o transcendente. Fernando Gil fala de desregulação ética, descrê do papel das comissões éticas, pois duvida que a reunião de representantes de ideologias e crenças tão díspares produza definições convincentes para todos; convida à invenção de valores adequados ao progresso científico, bem como à criação de categorias por elaborar, para já não falar no convite a um grande debate público sobre a morte, cujo desafio aqui deixo, em todo caso, feito. Mas, sobretudo, aposta também na ética da responsabilidade e refere que esta se baseará na partilha equitativa dos direitos e deveres, tendo em conta as implicações e os efeitos da acção, que poderão estender-se até muito longe, por exemplo, a actos de outrém e, se bem percebi, até
da sociedade. Há palavras que são introduzidas e que eu gostaria aqui de sublinhar: solidariedade, comprometimento, compaixão, paciência, no sentido etimológico de padecimento
e que, segundo esclarecimento seu, comporta ainda a noção de aceitação.
Em entrevista ao Canal 2 da Televisão portuguesa, em 200132, João Lobo Antunes referiu-se aos mundos morais locais, ao bom senso e à sensibilidade, à humanidade, à dignidade supletiva, à empatia para com os seus doentes, à cultura da esperança e à importância de um nome - por
acaso também Esperança - numa situação concreta, ao curriculum escondido, ao que se vive na sala de operações, ao que está nas paredes das instituições, à não imposição de valores, à boa prática, a que não se apliquem receitas, ..... É todo esse património que faz de nós pessoas responsáveis pela decisão certa, em boa consciência e talvez o imperativo categórico nesta matéria seja, que me perdoe Kant, o da prudência.
O Direito também é sensível a estas inquietações e permite que os médicos, no âmbito do dever de testemunhar e de colaborar com a Justiça, guardem segredo profissional, escusando-se a depor sobre factos abrangidos por segredo. Esta faculdade encontra-se prevista no artigo 135º do C. processo penal - nº 1. No entanto, o nº 2 deste preceito prevê a possibilidade de o Tribunal averiguar a legitimidade de escusa de depoimento e de ordenar o depoimento, em caso de conclusão pela ilegitimidade da escusa. O nº 3 do preceito prevê mesmo que, não obstante a procedência de arguição de segredo, a prestação de testemunho, com quebra de segredo, seja ordenada por Tribunal superior àquele em que o incidente se suscitou, ou pelo plenário das secções criminais, se o incidente se tiver suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça. Em ambos os casos, sempre que tal se mostre justificado face às circunstâncias e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
Ou seja, o médico pode negar-se a depor sobre factos abrangidos por segredo, mas pode ser forçado a falar, quebrando-o. A consciência da decisão cabe ao Tribunal, que, de resto, ouve o organismo representativo da profissão – no caso a Ordem dos Médicos na pessoa do seu Bastonário – e que tem de ter em conta as circunstâncias e interesses concretos, para aferir acerca do interesse prevalecente. No dizer de Cunha Rodrigues (1991: 486) é um regime - cito - : imbuído da prudência exigida pelo melindre dos interesses em jogo e pelo referencial ético que deve inspirar a decisão, e que - acrescento eu - , no fundo, exige que o Tribunal se paute pelos mesmos critérios a que haverá de submeter-se o médico, caso quebre voluntariamente o segredo. De resto, o depoimento do médico far-se-á na qualidade de testemunha, que não denunciou facultativamente um crime e a consciência da decisão cabe ao Tribunal e porventura ao organismo representativo da profissão.
O dever de sigilo pode concorrer ainda com outros deveres impostos legalmente aos médicos, no âmbito de um sistema de saúde pública e de cooperação com a justiça e os serviços sanitários. É o que acontece com o dever de declaração de doenças contagiosas de que o médico tenha conhecimento ou suspeita, nos termos da Base IX da Lei nº 2 036, de 9 de Agosto de 1949, actualizada pela Portaria nº 1071/98, de 31 de Dezembro. Esta Portaria não inclui, aliás, na tabela das doenças de declaração obrigatória a seropositividade, que, a verificar-se, deve ser notificada obrigatoriamente à Comissão Nacional de Luta contra a Sida (Despacho do Ministro da Saúde nº 14/91, de 19 de Julho de 1991).
O drama da sida trouxe à humanidade, com uma acutilância brutal, o problema da verdade. Os vínculos jurídicos deixaram de chegar, a tipicidade penal não estava preparada, os sistemas contêm em si mesmos valores que se jogaram em contradição, como quando se quer proteger a vida e a intimidade. Os médicos, assistindo a uma agonia lenta mas fatal, depois de esgotados todos os meios, ficaram perante a última arma, que é ouvir, escutar, mesmo quando já não há respostas, a caminhada é para a porta da saída e as palavras, os desejos, os gestos são os
derradeiros. Arma que, porém, é talvez das que mais bem cumpre aquilo a que podemos chamar respeito pela dignidade do outro. Os valores do silêncio, do segredo, da autenticidade ressurgiram de novo.
Tendendo a Sida para a cronicidade, como me têm dito vários médicos e apesar de ser incurável, a notícia de que se é portador do vírus é, antes de mais, a notícia da mortalidade, ou se preferirmos, de que não se é imortal. Este choque, nunca rigorosamente inteligível pelo ser humano, como diz Fernando Gil (Mors certa, Hora incerta), pode implicar desorientações a todos os níveis, ou organizar o caos, como também diz João Lobo Antunes33. Há que ser, então, sobretudo humano, solidário. Um médico e um doente são antes de mais e primeiro pessoas, que se cruzam em momentos nobres, como o do nascimento e da morte. Mas esse choque não torna o doente irresponsável nem o transforma em alguém não autónomo. Ele tem um dever de verdade para com os outros seres humanos de cuja verdade depende a não propagação de uma doença.
Proponho, a par do reforço da deontologia médica a criação de uma deontologia do doente e sei, aliás, que não inovo. Há Hospitais, dentro e fora do país, onde ela já existe. Mas há que lhe dar melhores condições de efectividade.
Proponho, ainda, que se entrecruzem alguns dos tradicionais princípios jurídicos com os que também já vão sendo tidos como tradicionais princípios da Bioética34 e da Medicina. Por exemplo: que se conjuguem os princípios da autonomia com o da responsabilidade e do segredo;
ou, que se conjuguem os princípios da justiça e do segredo de molde a ver naquele, não só a vertente utilitarista de distribuição de recursos na saúde, mas também a concretização do princípio da igualdade, com assento no artigo 13º da Constituição, que impede a discriminação das pessoas, no caso concreto, em função da doença.
Da primeira conjugação resulta um dever de protecção de terceiros e de verdade, por parte do doente, em relação à comunidade e ao médico; mas também os direitos à confidencialidade e anonimato do doente, em relação à classe médica e à comunidade. Como diz Manuel Silvério Marques (1999, p.104, nota): Urge reforçar a autonomia dos doentes, já fragilizados pela doença....O que significa, afinal e apenas, mais in/formação e mais responsabilização. Ou seja, uma ética da responsabilidade.
Sei que o desafio é grande. O olhar de Walter Osswald (1996) fá-lo escrever no seu artigo Direitos dos Doentes que Para alguns, não passarão de utopias mas, como também lembra, citando Sola, a utopia forma parte da realidade...
Não encontro no ordenamento jurídico nenhuma norma que fale de direito à verdade, apesar de algumas permitirem às vezes levantar o véu. Pelo contrário, encontro o crime de violação de segredo profissional, a proteger os bens intimidade, integridade e, como era ensinamento de Eduardo Correia35, a necessidade social de confiança em certos profissionais. Isto não quer dizer, como julgo ter demonstrado, que a verdade não venha à luz. Seja por imposição legal, seja porque baseada numa cláusula de justificação, ou porque ordenada pelo Juíz. Sempre, em boa consciência, porque baseada numa ética da responsabilidade que, como também espero ter mostrado, se aplica rigorosamente a todos. Essa ética deve ser particularmente suscitada e encorajada no que toca a parte mais fragilizada, isto é, o doente, no sentido de o ajudar a tornar- se cada vez mais livre de poder dizer da - e a - sua verdade. Para isso, é bom que pensemos na importância extrema do segredo e noutro dos legados hipocráticos - que eu diria tragicamente pleno de actualidade - : Todas as doenças são divinas e todas são humanas36. Pergunto, por fim, que pode a humanidade se não viver do modo mais digno todas elas?

AGRADECIMENTOS
Expresso a minha gratidão a João Lobo Antunes e Fernando Gil pela bondade que têm tido em me ouvir e encorajar.
Agradeço ao Bastonário da Ordem dos Médicos, Germano de Sousa, actual Director da Revista Acta Médica Portuguesa, o convite para a publicação deste texto nesse
local.


NOTA DA AUTORA
* Este texto corresponde, no essencial, à intervenção por mim efectuada no Seminário “As Faces da Sida: Diferentes Olhares um Objectivo”, ocorrido no Funchal entre 28 e 29 de Novembro de 2003 e promovido pela Delegação Madeira da Fundação Portuguesa “A Comunidade contra a Sida”. O texto baseou-se ainda na intervenção que fiz, em 1 de Junho de 2001, na Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, Forum sobre “Segredo Médico”, a convite do seu Presidente, à data, João Lobo Antunes.

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Philadelphia, filme realizado por Johnathan Demme (USA 1993).

NOTAS
1 1º Juízo Criminal, Processo Comum Colectivo nº 340/98.
2 Em 1ª Instância o arguido acabou por ser condenado na pena única de seis anos e seis meses de prisão, que incluía as seguintes penas parcelares: pela prática de um crime de propagação de doença p.p.p. art 283º, nº 1, al.a) do C. Penal, pena de quatro anos e seis meses de prisão; pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p.p.p. art. 143ª, do C. Penal, penas de sete meses por cada um deles; pela prática de um crime de violação de domicílio, p. p. p. art.190º, nºs 1 e 3, do C. Penal, pena de sete meses de prisão; e pela prática de
dois crimes de dano, p. p. p. art. 212º, do C. Penal, penas de sete e nove meses de prisão.
3 Na secção de Jurisdição Criminal, processo nº 989/00, Acórdão de 2000-10-03.
4 Relativamente ao crime de propagação de doença contagiosa entendeu o Tribunal da Relação de Évora ser mais justa e adequada, para sancionar a conduta do arguido, a pena de três
anos e seis meses de prisão. O mesmo Tribunal manteve a pena de sete meses, pela prática do crime de violação de domicílio, de que o arguido também vinha acusado, mas reduziu as penas de sete meses de prisão, por cada um dos crimes de ofensa à integridade física simples de que era ainda acusado, para quatro e cinco meses de prisão, e mesmo as de sete e nove meses de prisão, por dois crimes de dano, para quatro e cinco meses, respectivamente. Tendo-se procedido ao cúmulo jurídico das penas parcelares o arguido acabou por ser condenado na pena global única de quatro anos e quatro meses.
5 Na respectiva Declaração de Londres, de 28 de Janeiro de 1988, pode ler-se o seguinte: “We emphasize the need in AIDS prevention programmes to protect human rights and human dignity. Discrimination against, and stigmatization of, HIV-infected people with AIDS undermine public health and must be avoided.”
6 In Jornal Oficial nº C 197 de 27/7/1988, pg 0008
7 A Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS) publicou então o Protocol for the identification of discrimination against people living with HIV , justificando-o por duas ordens de razões:
“1. The identification of different forms of arbitrary discrimination, with a view to eliminating them, helps to respect, fulfil and protect human rights. This is an important goal in
its own right, as recognized by the ongoing attention and deep commitment to human rights across national and international communities.
2. Identification and elimination of arbitrary discrimination is an imperative in the control of HIV/AIDS. In this field, public health and human rights do not conflict with each other:instead, public health interests provide an additional and compelling justification for identifying and eliminating arbitrary discrimination on the grounds of HIV/AIDS status.”
8 Conquanto se refira a outros sigilos como, por exemplo, o da correspondência (art. 34º, nº 1) e o da imprensa e meios de comunicação social ( art. 38º, nº2, al. b)).
9 E ainda o que vai disposto nos respectivos nºs. 2.
10 Pense-se, por exemplo, em cicatrizes, deformações ou sinais particulares eventualmente existentes no corpo, que se entenda dever ocultar dos outros.
11 A epígrafe do artigo 26º é (Outros direitos pessoais) e a do
artigo 25º (Direito à integridade pessoal).
12 Fazem parte da reserva da intimidade da vida privada questões relativas à opção sexual, relações afectivas, hábitos de vida, entre outras. Ver, para maiores desenvolvimentos, Paulo Mota Pinto (1993).
13 O nº 6 do art. 19º refere ainda o direito à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.
14 Discorre deste modo João Lobo Antunes (2000, p. 6): O sofrimento existencial é mais subtil e prende-se à noção própria de dignidade e à perda de autonomia e é, em parte, um valor condicionado socialmente. Como escreveu alguém, para o compreender bem é necessário elevarmo-nos até ao plano em que as superioridades respectivas de médico e doente se encontram. A apreensão correcta do conceito da dignidade de outrém é arte que o médico aprende toda a vida, em grande parte moldada pelas suas próprias escolhas.
15 Realizado por Jonathan Demme, USA, 1993.
16 Na apresentação do filme em Portugal, na Cinemateca, em 24 de Fevereiro de 1999, Teresa Pizarro Beleza (1999, p. 4) explica que “a filosofia do filme” vai para além da argumentação em torno do despedimento por doença “para colocar o epicentro do problema na homossexualidade e nos preconceitos e resistências que origina”.
17 No filme “Philadelphia” a expressão é atribuída a uma decisão do Supremo Tribunal, em que se busca a regra precedente do caso a julgar.
18 Sobre a tutela geral da personalidade cfr. Capelo de Sousa (1995) e no Direito Civil Pedro Pais de Vasconcelos (1999, pp.38 a 54).
19 A questão dos grupos de risco é, em todo o caso, problemática. Discorre assim Alexandre Quintanilha em entrevista concedida ao Jornal Notícias (30/11/03), na véspera do Dia Mundial da Sida: “ Notícias: Hoje interessa-se pelas questões ligadas ao risco, pela forma como as pessoas o percepcionam e comunicam. A sida começou por afectar a comunidade homossexual e dez anos depois já era uma doença maioritariamente heterossexual. Sente que foi resultado de uma campanha eficaz de pervenção e alerta para o risco? AQ: Foi um trabalho de consciencializão admirável o que os norte-americanos fizeram em São Francisco junto da comunidade homossexual. Um trabalho de quem conhecia o terreno e por isso mesmo conseguiu uma grande proximidade com as pessoas em risco. Mudaram-se comportamentos, que é a coisa mais difícil de atingir. Porque transmitir a iminência do perigo é fácil, difícil é conseguir tirar consequências dessa informação.
É uma visão determinista, quase primária, achar que se mudam facilmente os comportamentos só por divulgar informação massificada – sabemos que o tabaco mata, mas quantos é que, sabendo-o, deixam de fumar? Jornal: Em Portugal, os números da sida não param de aumentar. Será que as campanhas não estão a ser eficazes, não se fez o suficiente? Em véspera de Dia Mundial... AQ: Não sou especialista nessa área, mas não me espantaria que a sida tenha aumentado nas populações de toxicodependentes e heterossexuais, os primeiros por irresponsabilidade, os segundos por julgarem que não correm riscos.”
20 Cfr. Ireneu Cabral Barreto (1999). Cfr. ainda Cruz (2002: 116 e 117). McColgan (2000) trata largamente a questão da discriminação tendo em conta o direito comunitário, The Human Rights Act 1998 e outro direito vigente em United Kingdom, nomeadamente, The Disability Discrimination Act 1995.
21 Vital Moreira e Gomes Canotilho (1993, Vol. I, pp.127 e 128) referem deste modo: A Constituição indica ela mesma um conjunto de factores discriminação ilegítimos (nº 2) [do art. 13º] Aí se contam os mais frequentes e historicamente os mais significativos dos elementos fundadores de diferenças de tratamento jurídico. Mas esse elenco não tem obviamente carácter exaustivo, sendo puramente enunciativo”. No mesmo sentido Martim de Albuquerque (1993, pp. 73 e 335 ).
22 McColgan (2000: 447 ss).
23 Paula Lobato Faria reflectiu sobre uma “Carta Universal dos Direitos e Deveres das Pessoas Infectadas com o VIH”, no âmbito de uma Comunicação apresentada no 1º Congresso Virtual HIV/SIDA, realizado entre Outubro e Dezembro de 2000, em www.aidscongress.net. , e continua a reflexão no nº de Dezembro de 2000, da revista Contra Sida , da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA. Acreditamos, tal como ela, “no papel ‘ideológico’ das declarações de direitos”, receamos, como aconteceu com tantas, que o mesmo nunca venha a ser
suficiente.
24 Muitas destas interrogações são igualmente colocadas na obra HIV and AIDS - Testing, Screening, and Confidentiality, Edted by Rebecca Bennett and Charles A. Erin (1999) .
25 O preceito diz exactamente: Quem, sem consentimento,
revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte”, aplicando-se aos médicos, ainda que não exclusivamente. A previsão normativa do art. 195º do C. Penal deve ser conjugada com a do art. 135º do Código de Processo Penal (C.P.Penal), epigrafada de Segredo profissional, que alude aos “ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional.
26 Na verdade, a comissão de um resultado por omissão só é punível, nos termos exactos do nº 2 do art. 10º do C. Penal, quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. Seguindo o critério material de determinação do dever que obriga a evitar o resultado, o médico tem um dever de garantia projectado, é certo, num contrato — isto é, tem um dever jurídico — mas fundado essencialmente no assumir fáctico de uma relação de confiança estabelecida entre ele e o doente, que o coloca em estreita relação com certos bens jurídicos ameaçados (a vida, a integridade do doente), ou seja, que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. Acontece isso, justamente, na situação em apreço, pois o médico encontra-se pessoalmente obrigado a utilizar os meios adequados a evitar que seja posta em perigo a vida e integridade do seu doente, por possibilidade de propagação de doença contagiosa de que tem conhecimento e está em condições de impedir, caso não omita o comportamento, pertencendo-lhe ademais quase em exclusivo tal conhecimento e a possibilidade de informação acerca da doença. Nestes casos, o médico é ainda garante e tem a responsabilidade por quem veio a tornar-se uma fonte de perigo e que, no caso concreto, é uma pessoa humana. Caso não actue o médico omite uma acção adequada a evitar a propagação da doença, criando desse modo, um perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física do Sr B que são assim postas em
causa.
27 Figueiredo Dias (1983, p. 63), Fernanda Palma (1985).
28 Este caso é referido normalmente na literatura anglo-saxónica do seguinte modo: Attorney-General v Guardian Newspapers Ltd and others (1988) 3 All ER 545 (ou seja, volume 3 of the All England Reports of 1988, pg 545) .
Encontra-se também longamente referido in Kennedy and Grubb (2002), pp. 1060 e ss. 29 Expressis verbis Lord Goff:”The third limiting principle is of far greater importance. It is that, although the basis of the law´s protection of confidence is that there is a public interest that confidences should be preserved and protected by the law, nevertheless that public interest may be outweighed by some other countervailing public interest which favours disclosure. this limitation may apply, as the judge pointed out, to all types of confidential information. It is this limitating principle which may require a court to carry out a balancing operation, weighing the public interest in maintaining confidence against a countervailing public interest favouring disclosure.” in: Kennedy and Grubb (2002), 1091.
30 Citado na literatura anglo-saxónica normalmente como: X v Y and others (1988) 2 All ER 648. Encontra-se referenciado também em Kennedy and Grubb (2002) : 1091 e ss.
31 Transcrevendo algumas palavras do caso: ...Is publication of this confidential information justified in the public interest?... On the one hand there are the public interest in having a free press and an informed public debate; on the other, it is in the public interest that actual or potential AIDS sufferers should be able to resort to hospitals without fear of this being
revealed, that those owing duties of confidence in their employment should be loyal and should not disclose confidential matters and that, prima facie, no one should be allowed to use information extracted in breach of confidence from hospital records even if disclosure of the particular information may not give rise to immediately apparent harm. In Kennedy and Grubb (2002: 1092).
32 Programa: *Por Outro lado - Canal 2 - entrevista conduzida por Ana Sousa Dias , 30 de Nov de 2001.
33 Entrevista de 30 Nov. 2001, Canal 2 RTP.Refere-se ainda a esta problemática em Memória de Nova Iorque e Outros Ensaios, texto intitulado “Dignidade” (cf. Lobo Antunes 2002).
34 São normalmente apontados os seguintes princípios: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. A obra de referência nesta matéria é a de Beauchamp e Childress (2001), denominada Principles of Biomedical Ethics , em que os autores defendem o que cada vez mais se tem chamado de principalismo, como eles próprios dizem que são referidos (cfr, p.23).
35 in: Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Especial do Código Penal, Boletim do Ministério da Justiça, 287, 16 (citado também por Rodrigo Santiago 1992, p. 106).
36 Sacred Disease, in Hippocratic Writings (1983: 251).

MARIA DO CÉU RUEFF

Um comentário:

Anônimo disse...

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Se correu alguma situação de risco

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